Além de manter as já existentes cláusulas de eleição de foro e de distribuição convencional do ônus da prova (artigos 11 e 333, parágrafo único do CPC/1973 e artigos 3º e 373, §3º do CPC 2015), o atual Código de Processo Civil ampliou as hipóteses de negócios processuais típicos e instituiu a cláusula geral de negociação processual. A figura, inovadora no ordenamento jurídico brasileiro, possibilita às partes realizar acordos procedimentais, ajustando-os conforme sua vontade e interesse, nas hipóteses em que a causa versar sobre direitos que admitam autocomposição. O instituto tem previsão no artigo 190 e parágrafo único, in verbis:
Art. 190. Versando o processo sobre direitos que admitam autocomposição, é lícito às partes plenamente capazes estipular mudanças no procedimento para ajustá-lo às especificidades da causa e convencionar sobre os seus ônus, poderes, faculdades e deveres processuais, antes ou durante o processo.
Parágrafo único. De ofício ou a requerimento, o juiz controlará a validade das convenções previstas neste artigo, recusando-lhes aplicação somente nos casos de nulidade ou de inserção abusiva em contrato de adesão ou em que alguma parte se encontre em manifesta situação de vulnerabilidade.
O CPC/2015 estabeleceu, em diversos dispositivos, elementos sobre os quais poderiam as partes negociar, os chamados negócios processuais típicos. São exemplos: a fixação de calendário processual para a prática dos atos processuais (art. 191); a renúncia expressa da parte ao prazo estabelecido exclusivamente em seu favor (art. 225); a suspensão convencional do processo (art. 313, II); e a delimitação consensual das questões de fato sobre as quais recairá a atividade probatória e de direito relevantes para a decisão do mérito na fase de saneamento (art. 357, §2º).
A novidade do artigo 190 é a ampla possibilidade de alteração e inovação no rito processual, respaldada numa cláusula geral que permite que sejam firmados negócios processuais atípicos. Todavia, essa ampla negociação não é ilimitada. O parágrafo único do dispositivo resguarda o poder judicial de apreciar a validade daquilo que foi convencionado pelas partes, podendo este recusar a aplicação das cláusulas negociadas nos casos de nulidade, inserção abusiva de cláusula em contrato de adesão ou em que alguma parte se encontre em manifesta situação de vulnerabilidade.
Teresa Arruda Wambier destaca que "por força do art. 190 do NCPC, portanto, não reputamos ser possível a pactuação de negócio jurídico processual que tenha por objeto deveres processuais imperativamente impostos às partes, sob pena de ser-lhe ilícito o objeto. Não vigora, ipso facto, o 'vale tudo' processual. O negócio jurídico processual não tem, e nem deve ter, esta extensão. (…) Não se pode, é nossa convicção, dispor em negócio jurídico processual que uma decisão poderá ser não fundamentada, ou que não vigora o dever de cumprir as decisões judiciais. Admiti-lo seria algo comparável à admissão do objeto ilícito na celebração do negócio jurídico processual1."
Não é demais lembrar que os princípios da eticidade, boa-fé e lealdade processual informam a integralidade do novo Código Processual Civil, de modo que o negócio processual não permite toda e qualquer forma de avença. O enunciado nº 6 do Fórum Permanente de Processualistas Civis (FPPC), por exemplo, definiu que "O negócio jurídico processual não pode afastar os deveres inerentes à boa-fé e à cooperação". Além disso, os arranjos processuais devem observar a razoável duração do processo, alçada à garantia fundamental pela Constituição de 1988 e reiterada pelo próprio diploma processual civil, em seu artigo 6º.
De toda forma, resta à doutrina e à jurisprudência a definição gradual dos limites daquilo que pode ou não ser objeto de convenção pelas partes. Nesse sentido, o FPPC traçou outras diretrizes para a interpretação e aplicação do instituto, por meio dos seguintes enunciados: 17: "As partes podem, no negócio processual, estabelecer outros deveres e sanções para o caso do descumprimento da convenção"; 19: "São admissíveis os seguintes negócios processuais, dentre outros: pacto de impenhorabilidade, acordo de ampliação de prazos das partes de qualquer natureza, acordo de rateio de despesas processuais, dispensa consensual de assistente técnico, acordo para retirar o efeito suspensivo da apelação, acordo para não promover execução provisória", 20: "Não são admissíveis os seguintes negócios bilaterais, dentre outros: acordo para modificação da competência absoluta, acordo para supressão da 1ª instância" e 21: "São admissíveis os seguintes negócios, dentre outros: acordo para realização de sustentação oral, acordo para ampliação do tempo de sustentação oral, julgamento antecipado da lide convencional, convenção sobre prova, redução de prazos processuais". Por fim, no tocante ao parágrafo único, o enunciado nº 18: "Há indício de vulnerabilidade quando a parte celebra acordo de procedimento sem assistência técnico-jurídica".
Interessante destacar, ainda, que não há empecilho quanto à utilização do instituto por parte da Administração Pública, desde que preservado o princípio da indisponibilidade do interesse público. Não se trata de dispo, renunciar ou transacionar em relação ao direito material em si, o qual permanece indisponível, e, portanto, impassível de transação. Entretanto, a forma de seu exercício pode ser objeto de transação recíproca. Nesse sentido, o FPPC registrou no enunciado nº 135 que "a indisponibilidade do direito material não impede, por si só, a celebração de negócio jurídico processual".
A ministra do Superior Tribunal de Justiça Nancy Andrighi, em voto proferido em sede de recurso especial2, destacou a inserção do instituto num movimento mais amplo pelo qual passa o processo civil, que "incentiva a desjudicialização dos conflitos e o sistema multiportas de acesso à justiça, mediante a adoção e o estímulo à solução consensual, aos métodos autocompositivos e ao uso dos mecanismos adequados de solução das controvérsias, sempre apostando na capacidade que possuem as partes de livremente convencionar e dispor sobre os seus bens, direitos e destinos do modo que melhor lhes convier (o que se reflete, inclusive no âmbito do processo, com a possibilidade de celebração de negócios jurídicos processuais atípicos a partir de uma cláusula geral – art. 190 do CPC/15)".
Dessa forma, a moderna inovação do Código privilegia a autonomia das partes, possibilitando que o processo seja um meio efetivo à realização do direito pleiteado, e que, como instrumento que é, possa se adequar às características, necessidades e peculiaridades do conflito.
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2 STJ. Terceira Turma. REsp 1.623.475 / PR. Relatora Exma. Sra. Ministra NANCY ANDRIGHI. Julgado em: 17/04/2018.
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Sobre o autor:
Marcus Vinicius Furtado Coêlho é membro da comissão que elaborou o projeto do atual CPC. Doutor pela Universidade de Salamanca, membro do Instituto Ibero Americano de Direito Processual, ex-presidente nacional da OAB e presidente da Comissão Constitucional da entidade.
Fonte: Migalhas.