Escrito por Rui Celso Reali Fragoso.
Decorridos 30 anos da promulgação da Constituição que consagrou o princípio da inviolabilidade no exercício da advocacia, a compreensão e a interpretação da norma ainda encontram divergência na sua plena e correta aplicação.
Pela primeira vez em nossa história constitucional, surgiu a figura do advogado e, assim, introduzida no capítulo intitulado Das Funções Essenciais à Justiça. O art. 133 da Constituição Federal (CF), além de inovador à época, revelou-se fundamental para o exercício da advocacia, especialmente no período em que vivemos, em que, na sadia busca do combate à corrupção em nosso país, os meios passaram, em muitos casos, a justificar os fins.
O art. 133 da CF, na verdade, não trata de homenagem ao advogado, ao lado dos magistrados e dos integrantes do Ministério Público, dentre aqueles que exercem função essencial à Justiça. Muito além do justo reconhecimento, a disposição constitucional, na essência, é garantia do próprio cidadão.
Ao contrário do que poderia revelar um exame isolado e superficial do texto, os princípios da indispensabilidade e inviolabilidade do advogado, contidos na norma constitucional, não instituem privilégios classistas, mas equiparam-se em amplitude a outros instrumentos constitucionais de proteção ao jurisdicionado, a exemplo de garantias conferidas aos juízes e membros do Ministério Público, por força dos arts. 95 e 128 da CF, respectivamente.
Neste ângulo, a equiparação do advogado aos demais agentes indispensáveis à administração da Justiça foi inovação excepcionalmente bem inserida, no escopo de aperfeiçoamento da prestação jurisdicional. As normas jurídicas são de natureza técnica, especialmente as processuais, e a atuação das partes, sem a presença do advogado, implica, muitas vezes, a insuficiência de argumentos para sua defesa, com a consequente negativa de seu direito. A atuação do advogado, longe do interesse corporativo, é necessária para a interpretação do direito que o cidadão comum desconhece, mas necessita.
A diferença fundamental na exegese do dispositivo constitucional está na proteção do exercício da advocacia e não do advogado. Sutil a diferença, mas fundamental. Nem sempre ambas estão conjugadas e apenas quando exercendo sua atividade profissional a inviolabilidade se torna presente e intocável.
Assim, conferida no exercício da atividade advocatícia, a inviolabilidade de que trata o art. 133 da CF atende aos princípios pétreos de nosso Estado Democrático de Direito – a ampla defesa, o contraditório e o devido processo legal –, direitos reservados a todo cidadão e, por decorrência, ao advogado no exercício de sua atividade em defesa deste cidadão.
A busca pela rapidez da solução dos litígios, um ideal perseguido por todos, não pode comprometer o direito de defesa. Portanto, em qualquer litígio, independentemente do valor em jogo, a presença do advogado é fundamental.
Surge agora em nosso país a discussão sobre a adoção do modelo americano denominado “plea bargain”, ou seja, a possibilidade de acordo entre réu e acusação para aplicação imediata da pena, precedida de confissão com o intuito de resolver rapidamente o caso e com isso diminuir o número e o tempo dos processos penais. Provavelmente, se desprovido, desde logo, do aconselhamento de advogado, o cidadão, especialmente o menos favorecido, sob o apelo e até pressão das autoridades, sucumbiria, até, possivelmente, deixando de exercer o direito que lhe é assegurado. O aparelhamento eficaz da Defensoria Pública é indispensável para a adoção do instituto que deve ser precedido de amplo debate para a construção da norma legal que vier, e se vier, a ser editada.
A busca pela rapidez da solução dos litígios, um ideal perseguido por todos, não pode comprometer o direito de defesa.
É bom sempre lembrar aos críticos e aqueles que idolatram os ídolos do momento que, só por intermédio dos advogados, a sociedade civil pode exercitar uma das suas mais importantes prerrogativas democráticas, precisamente a defesa ou a reivindicação de seus direitos.
A indispensabilidade da presença do advogado em qualquer momento de procedimento criminal ou cível importa eficiente defesa dos direitos subjetivos em juízo. Sob este aspecto acredito não poder haver restrição.
Quanto à inviolabilidade, trata-se de imunidade concedida aos advogados, nos limites da atividade profissional, a fim de garantir absoluta segurança na defesa dos interesses de seu constituinte, independentemente da natureza do procedimento.
Enquanto exclusiva da atividade profissional, a inviolabilidade é intocável e indiscutível. No entanto, não é absoluta para a pessoa do advogado fora de sua atividade profissional, como é evidente, ou ainda se a atividade se confunde com a conduta investigada, desde que claramente demonstrada esta conjugação.
Inadmissíveis buscas em locais de trabalho do advogado, sob pretexto de trazer provas contra o seu cliente investigado. Não tão rara, esta situação foi vivida com certa e infeliz intensidade no Brasil na década passada, como de forma intolerável, recentemente reprisada.
O escritório do advogado assim como seu sigilo bancário são absolutamente invioláveis, na medida em que ele for insuspeito. Não há dúvida de que o advogado é um cidadão como qualquer outro, a justiça não entra em seu escritório, senão em casos excepcionais em que a sua conduta é objeto de perquirição.
Da mesma forma, a interceptação de comunicação (telefônica, e-mails, etc.) entre o investigado e seu advogado viola o sigilo profissional assegurado na CF e no Estatuto da Advocacia. Se ocorrida esta gravíssima violação por parte de autoridade, ainda que de forma incidental a interceptação autorizada judicialmente, a parte da conversação entre cliente e advogado deve ser inutilizada e não pode influenciar o convencimento do juízo.
Também, não é dado ao intérprete restringir a norma constitucional, razão pela qual a inviolabilidade do art. 133 da CF compreende para efeitos penais e patrimoniais as manifestações mais ardentes irrogadas nos processos, embora reprovável o excesso de linguagem.
Importante ressaltar que o advogado deve obedecer ao Código de Ética Profissional, com validade não só legal, como pessoal e moral. A linguagem do advogado tem dignidade e essa dignidade deve ser atingida pelo advogado, que não deve transigir.
O advogado atua sobre as paixões, as ânsias, os inconformismos e disto pode resultar o exercício menos adequado na sua atuação profissional, mas, ainda assim, não punível.
Os excessos de linguagem ocorridos em discussão de causa que mantém liame com o objeto do litígio, embora reprováveis e passíveis de exame pelo órgão de classe dos advogados, estão acobertados pela imunidade judiciária. Não deve haver dúvida de que para desfrutar da proteção constitucional, desde que os arroubos cometidos pelo advogado estejam ligados aos estreitos limites da discussão da causa.
A imunidade não é um salvo-conduto para o uso de linguagem ofensiva e despropositada sem relação direta com o litígio.
Aliás, não é incomum a agressividade descompensada nos processos diante da ausência do bom Direito. A combatividade desabrida e limites, quer dirigida ao magistrado, ao integrante do Ministério Público ou ao advogado ex adversus, merece reprimenda e não está protegida pelo art. 133 da CF.
Nem sempre é simples a distinção do excesso na escrita reprovável, mas não punível com o injustificável abuso de linguagem que a ninguém se deve permitir, como um “bill de indenidade”.
Repita-se, o uso da linguagem do advogado deve ser adequado e aquilo que ultrapassa o aceitável deve ser examinado com muito cuidado: primeiro, para não tolher o exercício do Direito e, segundo, para não permitir a tresloucada escrita ou manifestação.
Como já mencionado, haverá excesso impunível se a manifestação considerada ofensiva for vinculada à atividade funcional e pertinente à pretensão que esteja o advogado defendendo em Juízo, o que é admitido, pois não viola qualquer princípio legal. A crítica, ainda que áspera, quer de decisão judicial, quer de manifestação nos autos da outra parte, ou mesmo verbal em audiência, é tolerável. Todavia, não há imunidade quando a ofensa for gratuita, desvinculada do exercício profissional e impertinente na discussão da causa. Daí resultará que a análise de cada caso é que definirá se as palavras ou atitudes do advogado representam descortesia, abuso ou extrapolam para o “jus conviciandi” e, portanto, penalmente puníveis.
O advogado não pode recorrer à gíria, não pode usar expressões vulgares. E a ironia não deve manifestar-se, salvo em raríssimas situações e bem escolhidas, sob pena de ferir o caráter sério do processo.
Mas, nem a independência profissional precisa chegar ao desacato ou à ofensa, nem a exigência do respeito à autoridade pode determinar a submissão passiva, numa atividade em que a coragem é condição essencial para o exercício da advocacia.
A combatividade do advogado não se confunde com agressividade descabida, quer no uso da linguagem, quer nas manifestações verbais.
“Exigir que o advogado não vibre – escreveu Mario Guimarães de Sousa – nem se inflame, na defesa do interesse que lhe está confiado e que muitas vezes representa a felicidade de uma família, a liberdade de um cidadão ou o patrimônio de quem lutou para tê-lo, é desconhecer a natureza humana” (ROSA, 1972, p. 61), mas a norma de conduta do advogado, mesmo quando tenha que usar da maior energia, não autoriza a ofensa desproporcional, o que significa abandonar uma parcela da própria dignidade.
Nem sempre é clara a distinção do excesso aceitável. A suscetibilidade de cada cidadão, também, não tem padrão preestabelecido. Em princípio, o advogado, no exercício de sua atividade, tem a imunidade profissional, mas do exame de cada caso dependerá a verificação desta condição.
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A ADVOCACIA à luz da Constituição Federal de 1988. In: COLTRO, A. C. Mathias (Coord.). Constituição Federal de 1988 - Dez anos. São Paulo: Editora Juarez de Oliveira, 1999.
NEGRÃO, Theotonio. A linguagem do Advogado. Revista de Processo, Revista dos Tribunais, n. 49, p. 39, 1987.
ROSA, Eliasar. Dicionário de Conceitos para o Advogado. Rio, set. 1972.
TACRIM, 15ª Câmara, HC nº 289.864/1, Rel. Juiz Silva Rico, 9/5/1996.
TJSP, 2ª Câmara Direito Privado, Apelação Cível nº 111258144.2014.8.26.0100, Rel. Des. Giffoni Ferreira, j. 29/11/2016.
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O artigo foi publicado na Revista do Advogado, da AASP, ano XXXIX, nº 141, de abril de 2019.
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*Rui Celso Reali Fragoso é advogado, foi presidente do Instituto dos Advogados de São Paulo e é sócio do escritório Rui Celso Reali Fragoso e Advogados Associados.
Fonte: Migalhas.